Filmes que retratam o sentimento efêmero de ser mulher.
Algumas das obras que transparecem o misto de sensações que é ser mulher: desde a repreensão social ao apoio incondicional.
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Ser mulher se ergue de um misto de sensações: do efêmero amar em ser por si só auto suficiente, em ser tão diferente mas também em está inclusa no contraditório, este que se ergue em um sistema patriarcal que nos repreende, nos molda e marginaliza. Quando realmente tocadas, é como se houvesse uma quebra de amarras e o nascimento de uma nova concepção de mundo. Um mundo em que não se há necessidade de cumprir padrões, não há necessidade de se martirizar física e emocionalmente por causa de um sistema que nos exclui e diminui. Sinto que meu perfil é quase um poço disso tudo, de reforçar a sorte incomparável de ser mulher mas também a dor em se dividir ao meio por ser privada de si.
Com isso, sou muito apegada ao sentimentalismo feminino - sinto que talvez, tenho uma tendência em admirar mulheres, bem aquele papo de que homens não tem tantas referências femininas, eu, muito pelo contrário, sinto que mal tenho referências masculinas: além do meu pai e do meu diretor favorito, mike flanagan. Por isso, como uma mulher FISSURADA em outras mulheres e no universo feminino (não aquele fútil em que as mulheres se invalidam, dito isso: NÃO SEJAM ASSIM!!!) decidi montar filmes que AMO e que pra mim, mostram exatamente essa sensação tão singular, monstruosa e perturbadora que é ser mulher, tal qual no memorável monólogo da fleabag:
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As mulheres nascem com a dor embutida. É o nosso destino físico: cólicas menstruais, seios doloridos, parto, sabe? Nós carregamos isso dentro de nós por toda a vida, os homens não.
Eles têm que procurar por isso, inventam todos esses deuses e demônios e coisas só para se sentirem culpados, o que é algo que fazemos muito bem sozinhos. E então eles criam guerras para que possam sentir coisas e se tocar, e quando não há guerras, eles podem jogar rúgbi.
Temos tudo isso acontecendo aqui dentro, sentimos dor em um ciclo por anos e anos e anos, e então, quando você sente que está fazendo as pazes com tudo isso, o que acontece?
A menopausa chega, a porra da menopausa chega, e é a coisa mais maravilhosa do mundo. E sim, todo o seu assoalho pélvico se desintegra e você fica com calor pra caralho e ninguém se importa, mas então você é livre, não é mais uma escrava, não é mais uma máquina com peças. Você é apenas uma pessoa.
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1. “Retrato de uma Jovem em Chamas”, Céline Sciamma:
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Se você é meu leitor, com certeza já deve ter percebido o tamanho da minha possessão e amor por essa obra. Pra mim, Sciamma consegue transcrever a exata sensação de um mundo utópico em que a vivência feminina não é abatida pela presença de um sistema opressor. Celine desenvolver o romance entre Marianne e Heloise de forma calma, leve e com uma profundidade indescritível. Existem obras que só se entende assistindo, consumindo cada gota de informação que se é possível, percebendo a arte que se põe em cada trecho do filme.
O fato de Heloise ansiar por algo diferente do que seu futuro predestinado - casar com um homem. Mas aceita-lo e aproveitar seu tempo de “liberdade” representam exatamente essa sensação falsa que as mulheres tem em entender que tem liberdade em uma falsa sociedade inclusiva em que, mesmo no século XXI, ainda são silenciadas em diversos âmbitos.
Além disso, tenho outro post que aprofunda ainda mais a desvalorização da arte de Marianne, sua relação com Heloise mas queria citar a relação das suas com Sophie.
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O paralelo entre "Retrato de Uma Jovem em Chamas" e o Mito de Orfeu e Eurídice.
ㅤㅤ Orfeu, na mitologia grega, era um poeta e músico de talento extraordinário, cujo canto encantava homens, animais e até mesmo os deuses. Ele se apaixona por Eurídice, uma ninfa, e os dois se casam. No entanto, pouco tempo após o casamento, Eurídice morre picada por uma serpente
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O aborto de Sophie e a tentativa de registrar esse momento por Marianne e Heloise em recriar uma pintura simbolizam, acima de tudo, experiências femininas de liberdade, dor e resistência num mundo moldado por olhares e normas patriarcais. O aborto é vivenciado de maneira crua, dolorosa, Sophie o vivência gritando e demonstrar a dor. Fazendo um paralelo cru a falta de representação e de representatividade da realidade vivenciada por diversas mulher mas que ainda é censurada em frente as obras cinematográficas. Assim, quando Marianne pinta a cena do aborto posteriormente, ela transforma a dor em memória, a experiência em arte. E ao pintar esse momento, inscreve o corpo de Sophie na história. Uma história que geralmente é silenciada.
Esse gesto atravessa o tempo — num mundo em que tantas mulheres morreram por abortos inseguros e tantas outras foram apagadas, pintar o aborto é um ato de resistência e de homenagem. Não se trata apenas de retratar, mas de testemunhar. Sciamma, por meio de Marianne, recusa a invisibilidade.
A pintura e o aborto se complementam na narrativa: ambos são atos femininos de autonomia e resistência. Ambas as ações partem do corpo — seja ele o corpo que decide não gerar, seja o corpo que cria — e ambas acontecem numa rede de cuidado entre mulheres, sem a presença de homens, num espaço que beira o utópico.
Sciamma denúncia a falta de direito das mulheres sobre seus próprios corpos, que passam a ser desconsiderados propriedades nossas e passam a servir como o patriarcado quiser. Somos erguidos por uma cultura que sempre violentou as mulheres, nossos gostos, nossos corpos, nossos trejeitos e nossa alma.
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2. “Little Women”, Louisa May Alcott & Greta Gerwig.
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Cada uma das irmãs March, no meu humilde ponto de vista, trazem consigo uma perspectiva diferente sobre o sentimentalismo doce e a vivência complicada em ser mulher.
Amy expressa sua ambição, tanto quanto Jo, em conquistarem um mundo que naquela época era dominado pelos homens. Daí nascem as icônicas frases de Amy March, “I’m not a poet, i’m just a woman” ou até “i want be great or nothing”, desse anseio em ser mais, em ocupar posições que não eram destinadas a mulheres. A essa sensação presente em nós até nos dias atuais, a sensação de impotência diante de um sistema frágil em que homens sustentam homens e desprezam mulheres.
Com isso, tem-se Jo (minha interpretação de Jo é como uma personagem que representa de fato a Louisa, em que haviam relatos de ser sáfica, então sim, considero-a uma mulher sáfica) seu medo em ser apagada em entrar em uma relação amorosa retrata diretamente o que os homens fazem: deposam suas esposas, roubam seus sonhos e talentos - claro que não existe nenhuma regra universal, existem homens como o marido de Virginia Woolf, o que eram poucos para a época. A realidade é que Jo não tinha medo de relacionamento, ela tinha medo de amar e de ser perder, perder o que gostava e perder o mais principal, seus sonhos. São os sonhos compõem quem somos. Jo March tinha medo de perder seu maior sonho, tinha medo de perder sua personalidade batalhadora, sua personalidade forte e, tanto quanto Amy, ambiciosa, Jo não cederia a desistir de seus sonhos por causa de um sistema patriarcal.
Por isso, quando surge outra frase icônica de “Little Women”, entre uma conversa entre Jo e Meg, acho que tudo é esclarecido.
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Acho que essa frase descreve exatamente tudo o que "Little Women” busca nos ensinar. Independente de nossos sonhos, seja ser casada, ter filhos e morar em uma pequena casa de campo, ser mulher já é um ato de empoderamento. A Jo não conseguia enxergar isso, não por mal, é claro, mas por ser algo estruturalmente tão imposto socialmente que ela teve medo de Meg estar apenas seguindo um destino predestinado. Enquanto isso, eu poderia escrever uma newsletter somente para a Betty, que se constitui como um pilar em toda a trama, ela é como a calmaria e o meio-termo entre as irmãs, aquela em que todas buscam exilo e encontram incentivo.
eu, particularmente, amo completamente a Betty.
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3. “Pieces of a Woman”, Kornél Mundruczó.
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Sinto que talvez esse seja um dos filmes mais pesados e sensíveis que já assisti - um dos meus favoritos também. Sinto, também, que talvez ele se vincule ao íntimo de mulheres que passaram por uma maternidade conturbada, ou até para aquelas que desejam vivenciar algum dia. Quando assisti esse filme, uma parte de mim foi quebrada pela crueldade que ele retrata.
Trazendo uma pequena sinopse, o enredo aborda o processo do enfrentamento de luto de Martha e Sean - cada um canaliza sua dor de formas completamente opostas, acho que chega a me magoar profundamente escrever sobre isso porque Martha, que perdeu sua filha recém nascida, era tratada como fria, apática e desalmada quando, na verdade, durante toda a trama acompanhavámos ela definhar aos poucos. Esquecer de si, de sua filha, que nem teve oportunidade de realmente conhece-la.
Tanto quanto todos os outros, “Pieces of a Woman” retrata os tabus sociais, trata sobre o luto e a dor. Um pequeno spoiler!!!! a minha parte favorita é quando Martha percebe que está perdendo sua filha, perdendo-a em sua memória, não consegue mais lembrar da cor de seus olhos, de seu cheiro (a garotinha cheirava a maça), no final do filme ela planta um pomar, além de guardar sementes e planta-las em um algodão, da mesma forma que faziamos quando eramos crianças.
Martha sofre em silencio, passa por seu luto sem uma base familiar, sem um marido, sem sua família. Ela convive com o julgamento enquanto é apossada pela dor incessante da perda. Poucos filmes me machucaram tanto como esse, escrevo isso para vocês chorando ao relembrar das cenas.
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4. “Silenciadas”, Pablo Aguero.
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Silenciadas acompanha um grupo de jovens mulheres presas e acusadas de bruxaria por um inquisidor paranoico. Elas são acusadas não por seus atos, mas por sua liberdade: por dançarem, cantarem, rirem entre si, por se encontrarem no bosque sem vigilância masculina. A chamada "bruxaria", na verdade, é o nome que a autoridade dá à autonomia feminina.
Nesse contexto, a fogueira não queima feiticeiras, mas mulheres livres.
O inquisidor interpreta a liberdade delas como ameaça. O sabá, que ele tenta provar como real, é uma fantasia masculina. As mulheres, então, assumem essa fantasia — inventam rituais, encenam o que os homens esperam ver. Mas fazem isso como estratégia de resistência, de ironia, como forma de sobreviver, ou até de desafiar o poder com sua própria arma: o imaginário.
O título Silenciadas já denuncia uma estrutura: a tentativa de controlar a fala feminina, de calar o canto, a linguagem, o mito e o desejo. No entanto, ao longo do filme, essas jovens mulheres criam um novo vocabulário, uma língua secreta feita de canto, de corpo, de riso — aquilo que o inquisidor jamais conseguirá entender ou controlar.
Há aqui um eco claro do pensamento de Hélène Cixous e sua ideia da écriture féminine, uma escrita do corpo, da experiência sensível, que escapa às formas de poder tradicionais.
Como em Retrato de uma Jovem em Chamas, o corpo da mulher é o território sobre o qual se travam as guerras do poder. É vigiado, disciplinado, punido. Mas também é nele que pulsa a resistência: no canto coletivo, na dança, na presença viva de uma subjetividade que não se curva.
O final do filme — que não detalharei aqui para preservar o impacto — é um manifesto silencioso e explosivo. A chama que o inquisidor teme, como em Marianne pintando Héloïse em chamas, é símbolo de liberdade e de memória. O fogo não destrói as mulheres — as transforma em mito, em força que sobrevive ao esquecimento.
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Muito obrigada por ler essa edição de “Manifesto em Transe”!!
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Se tiver alguns filmes que ache que combine com a temática, por favor compartilhe comigo, ficarei muito feliz em assistir!
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Leia também:
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Não espere de alguém algo que somente você faria.
ㅤ Tendemos a esperar atitudes semelhantes às nossas das pessoas ao nosso redor, é quase como uma prece por bondade. Um tratamento decente, uma cordialidade diária ou o mínimo de respeito e consideração. Entretanto, isso é tendencioso a falhar.
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I’m not afraid, I was born to do this: Joana D’arc e Sarah Fier, os exemplos de como o patriarcado martiriza mulheres.
ㅤㅤ Na segunda parte dessa newsletter se tem uma referência a “Rua do Medo: 1666”, e contém SPOILER!!!!