O paralelo entre "Retrato de Uma Jovem em Chamas" e o Mito de Orfeu e Eurídice.
A forma perspicaz com que Céline Sciamma entrelaça de forma metáforica o trágico destino de Orfeu e Eurídice, com o de Marianne e Héloïse .
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Orfeu, na mitologia grega, era um poeta e músico de talento extraordinário, cujo canto encantava homens, animais e até mesmo os deuses. Ele se apaixona por Eurídice, uma ninfa, e os dois se casam. No entanto, pouco tempo após o casamento, Eurídice morre picada por uma serpente.
Desolado, Orfeu decide descer ao submundo para trazê-la de volta. Com sua música, ele comove Hades e Perséfone, os deuses do submundo, que concordam em permitir que Eurídice retorne ao mundo dos vivos — com uma condição: Orfeu deve caminhar à frente dela e não olhar para trás até que ambos estejam fora do reino dos mortos.
No entanto, tomado pela dúvida e ansiedade, Orfeu olha para trás pouco antes de saírem completamente do submundo. Com isso, Eurídice é puxada de volta para o mundo dos mortos para sempre.
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“Muito cedo, porém, envolve os olhos Orfeu
E de novo ela cai, e de novo morreu!
Como conseguirás as três Parcas domar?
Crime não houve teu, se não é crime amar.
E, agora, debruçado sobre os montes,
Junto à água das fontes
Ou onde o Hebro abre seu caminho
Orfeu chora sozinho
E, em luto e em pranto, invoca a alma querida,
Para sempre perdida!
Agora, todo em fogo, clama, ardente
Sobre a neve do Ródope imponente,
E ei-lo, furioso como o vento, voa
E, em torno, o ardor da bacanal ressoa.
Está morrendo, vede, e a amada canta,
Seu nome vem-lhe aos lábios, à garganta.
“Eurídice”, a palavra derradeira.
“Eurídice”, dizem as matas,
“Eurídice”, as cascatas.
Repte o nome a natureza inteira.
Ode ao Dia de Santa Cecília1, Alexander Pope.
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Inicialmente, torna-se necessário entender o contexto da época. A França do século 18, onde mulheres tinham liberdade tal qual um universo paralelo em que porcos podem voar. A trama retrata Héloïse como um espelho feminino do século, onde as mulheres eram obrigadas a estarem em desvantagem e em papel de submissão. Mesmo que pudessem optar por estar solteira, como Marianne, ou seja, idem ao casamento, nunca teria liberdade o suficiente para ser mulher, exercer seu papel de singularidade, até em sua profissão de pintora. Marianne expressa isso quando diz:
“É para imperdir-nos de fazer grande obras. Sem noção da anatomia masculina os maiores temas nos escapam.”
Expressando o apagamento cultural que as mulheres sofriam, especialmente as artistas, necessitando esconder-se e assumir o papel do anonimato através de pseudônimos.
Em um contexto de sociedade patriarcal, ao emergir na atmosfera do filme, o telespectador esquece por algum tempo o que é estar inserido em um modelo social que te exclui e te diminui, sendo tomado pela bolha de Marianne, Héloïse e Sophie, onde há somente o apoio e a descoberta de novos sentimentos - a amizade, o amor e o apoio entre mulheres.
Entretanto, ao desbravarem a leitura uma tradução francesa das Metamorfoses de Ovídio2, as jovens discutem sobre a tomada de decisão de Orfeu diante a sua aflição e ansiedade em ver sua amada Eurídice. Marianne sugere que Orfeu escolheu a memória idealizada de Eurídice, preferindo a lembrança à realidade.
“Ele se vira não por desobediência, mas por escolha. Ele não aceita perder a imagem dela. Não a escolha do amante, mas do poeta”, ela opta pela memória, que com receio de profanar contra a imagem da amada, mante-la pura, perfeita e inalterada. Podendo entrelaçar-se a profissão de Marianne, eternizar algo, alguém, como faz com a imagem de Héloïse, igualmente com Orfeu faz com sua amada Eurídice. Marianne não vê Orfeu como um herói trágico que falha, mas como alguém que reivindica o poder de decidir como lembrar, mesmo que isso custe a perda do real. É uma visão que prioriza o poder da subjetividade, da estética, da memória — acima da posse concreta do outro.
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Paralelo a Marianne, Héloïse propõe uma teoria diferente.
“E se Eurídice disse: vire-se?”, sugerindo que não foi apenas Orfeu quem decidiu o destino do casal, mas que Eurídice pode ter sido agente de sua própria separação. Essa hipótese introduz uma leitura radicalmente feminista e libertadora do mito — onde a mulher, em vez de ser vítima da decisão do homem, escolhe seu próprio fim, ou seu próprio não-retorno. Héloïse sugere uma ideia onde Eurídice têm autonomia e decide além de seu desejo romântico, sendo além de uma projeção do amor de Orfeu. Sciamma busca representar justamente isso em sua obra, a reparação histórica de artistas que se perderam com o tempo, por estarem inseridas em um contexto social onde não existia a autonomia feminina, onde mulheres eram vistas somente como uma prole destinada a gerar filhos, limitando-se a não terem sentimentos e serem quase que bonecas.
Héloïse está presa a um destino social (o casamento arranjado), mas dentro do tempo limitado que compartilha com Marianne, ela afirma seu desejo, sua sexualidade e sua liberdade emocional. Entretanto, estando entregue a seu romance com Marianne, entende-se que ela declara simbolicamente sua vontade de resistir, de permanecer de quem desejava decidir seu próprio destino.
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O olhar de Orfeu reencenado por Marianne.
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No desfecho do filme, Marianne vê Héloïse sentada em um teatro, assistindo sozinha a um concerto de "Verão", de Vivaldi — a mesma música que, anteriormente, Marianne havia tocado para ela ao piano. Marianne está em um camarote, escondida. Héloïse não a vê.
Marianne observa — e não interfere. Somente observa de longe.
"Orfeu não se virou por fraqueza. Ele se virou porque queria guardar a imagem de Eurídice."
Na cena final, ela faz exatamente isso. Ela olha, mas não chama, não se aproxima, não rompe a distância. Ela aceita a separação — e ainda assim escolhe olhar. Esse olhar não é uma tentativa de recuperar Héloïse, mas de guardá-la eternamente na memória, como imagem emocional e estética. É, portanto, um gesto deliberado, cheio de significado. Não é um erro, é uma escolha — como Orfeu, segundo a sua leitura. Ela entende que o amor vivido plenamente no tempo não é o mesmo que o amor eterno da memória. O olhar final sela a transformação da paixão em lembrança, da presença em ausência duradoura.
No entanto, na expressão de Héloïse, vemos que ela também está cheia de emoção — não porque vê Marianne, mas porque sente a lembrança. A música evoca o amor vivido. Ambas habitam o mesmo espaço por um instante, mas separadas. Ainda assim, há algo pleno nessa separação: o amor não desapareceu, apenas mudou de forma. O amor se adapta, adormece, toma outras formas - como o de Marianne e Héloïse - mas, no meu ponto de vista, quando equiparado ao delas, ele nunca some. Conforme o tempo, ele reduz mas nunca é esquecido, como uma saudade ou um pulsar que aparece incessantemente. Como uma dor no joelho que aparece uma vez a cada seis meses. Nunca esquecida, sempre permanece lá, mesmo que de certa forma com menor frequência.
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ㅤㅤㅤㅤㅤ“Nem tudo é passageiro. Alguns sentimentos são profundos.”
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤ ― Céline Sciamma, Retrato de uma Jovem em Chamas
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Muito obrigada por ler!
Vocês não conseguem medir o tamanho do meu amor por “Retrato de Uma Jovem em Chamas”, é aquele tipo de obra fascinante que se enraíza em você, que te faz se apaixonar e que, de certa forma, passa a fazer parte de você e de sua alma. Um dia desses, vi uma análise que me incentivou a redigir esse newsletter. Ele dizia que as vezes, a arte se mesclava em uma obra cinematográfica para comover o leitor mas que, no entanto, Sciamma consegue fazer com que o filme seja pura arte, não sei se você me entende mas enfim. Muito obrigada mesmo por ler!!
Esse foi de longe a coisa mais especial que escrevi recentemente.
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A "Ode ao Dia de Santa Cecília" é uma composição musical que celebra a padroeira dos músicos, Santa Cecília, e é comumente associada ao Dia do Músico, celebrado a 22 de novembro. Essa ode foi composta por vários músicos, incluindo George Frideric Handel e Henry Purcell, e é frequentemente interpretada em celebrações musicais.
As Metamorfoses de Ovídio é uma obra com muitas narrativas míticas. Os diversos episódios se sucedem com um encadeamento narrativo. Além disso, o tema da transformação constitui um elemento central ainda pelo fato de mostrar o seu engenho com mais firmeza.