O que resta de nós quando ninguém nos vê? Como "Até os Ossos" retrata a invisibilidade da população marginalizada.
Em "Até os Ossos" (Bones and All), Luca Guadagnino desenha um mapa dos que não pertencem. Uma estrada de corpos invisíveis, de desejos marginalizados, de afetos indesejáveis.
Às vezes, amar é como ter fome.
Não fome de comida, mas de presença.
De ser visto. De ser aceito.
E essa fome — quando ninguém a sacia — vira uma espécie de dor nos ossos.
Dor de existir no limite.
Hoje, nós iremos falar sobre Até os Ossos, o filme de Luca Guadagnino.
Mas não como um filme de horror.
Vamos falar dele como um mapa de todos os corpos que não cabem no mundo.
Da forma que “Até os Ossos” retrata a invisibilidade que as minorias sociais sofrem, porque mais do que uma expressão de amor através do canibalismo - de devorar o outro e a si mesmo - a obra representa um grito silenciado.
ㅤ
Quero ressaltar que para construir essa newsletter, além de assistir a obra, também assisti outras resenhas críticas. Aqui prevalece o meu ponto de vista, nunca com o intuito de força-lo a vocês, mas de apresentar uma nova perspectiva.
ㅤ
O filme se situa em uma atmosfera desconfortável, como se as coisas estivessem erradas. Na primeira cenas entendemos o porque, Maren come o dedo de sua colega de classe em meio a sua cena de tensão que surge entre as duas. Ao correr pra casa e contar a seu pai, é abandonada por ele e recebe somente uma fita. E dai começa a trama de “Até os Ossos”.
Para mim, o filme foi panfletado como uma das obras que tratam a apologia ao canibalismo como manisfesto do amor sentido, entretanto, sinto que ele cumpre um propósito muito mais profundo. Não que o romance entre a Maren e o Lee seja menos importante, muito pelo contrário, me senti tão apaixonada e cativada pela atuação, pela composição e amadurecimento dos dois que certamente terá uma parte da newsletter somente sobre isso. Mas acho que o recado principal é de como os dois são vitimas de um sistema de exclusão, a ponto de cometerem homicídios, estarem expostos e cobertos do sangue de suas vitimas mas, mesmo assim, nada acontece.
ㅤ
A invisibilidade social que cerca a trama
Acompanhamos a trajetória de Maren ao encontrar o personagem Sully (Mark Rylance) que também é um canibal e, finalmente ela entende que existem outros como ela no mundo. As pequenas cenas em que Maren e Sully coexistem no mesmo ambiente são desconfortáveis, o homem afirmava não matar ninguém mas cultivava com ele uma longa trança de cabelos, o que simbolizava uma espécie de “ritual” em que ele não deixava suas vítimas irem embora por isso, que não havia as devorado. É como se ele tentasse manter viva uma parte daqueles que consumiu.
Sully é um homem solitário, carente e amedrontador. Sua presença nos rememora um sistema predador. Ele reaparece nas cenas, perseguindo Maren para relembrar que sempre estará presente. Mas, além de tudo, também é um homem invisivel perante a sociedade que ataca meninas como Maren, mulheres que estão sendo negligenciadas. Ele acredita que tem algum tipo de direito sobre Maren por tê-la “acolhido”, como se suas necessidades lhe dessem permissão para invadir sua vida. Sua presença é intrusiva, simbolizando o predador camuflado de cuidado, ele é a encarnação do masculino controlador e solitário, que confunde atenção com posse.
Além disso, sendo completamente diferente, tem-se o personagem Lee (Timothée Chalamet) - que NECESSITO fazer um adendo urgente, eu AMEI a atuação do Timothée e me comprometo em ver outros filmes dele - talvez o mais bem construído, ele nos fornece pequenas informações sobre si mesmo que são quase sussurradas durante a trama.
Lee é um personagem que se move nas margens.
Ele não pertence a lugar algum — nem geográfico, nem afetivo, nem identitário. É quase como um nômade, ele não se identifica com nenhum lugar, nem mesmo o que chama de casa. É um jovem que carrega o corpo como se estivesse sempre pronto para fugir. Não há senso de pertencimento em Lee mas, em uma cena marcante, ele compartilha que teve um relacionamento com um homem — um momento breve, mas que abre uma fenda na narrativa: a revelação de que o desejo dele não obedece as normas. A bissexualidade de Lee não é espetacularizada. É uma vivência discreta e íntima.
Lee é, nesse sentido, o retrato de uma sexualidade que o cinema muitas vezes sufoca:
aquela que não grita, mas resiste. Que não se declara, mas se esconde por medo de ser devorado — não pela fome, mas pelo preconceito. A performance cultural corporal e visual de Lee também contribui para essa leitura:
roupas soltas, manchadas; (como a cena em que Kayle diz que ele está vestido como um homossexual, como algo ruim em um momento de raiva).
maquiagem borrada em momentos íntimos;
postura entre a delicadeza e a agressividade — um corpo que nunca está em repouso.
Lee desafia os binarismos de gênero, de desejo, de moralidade.
No fim, seu amor por Maren não é uma redenção.
É uma chance de ser inteiro, ainda que por pouco tempo.
Porque amar, para quem vive à margem,
é sempre um risco.
E também uma forma de resistir.
ㅤㅤㅤㅤ
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤ
ㅤㅤㅤㅤ
ㅤㅤㅤㅤ
ㅤㅤㅤ
Em paralelo a isso, têm-se Maren - ela se constitui como tudo que a sociedade ama inviabilizar: uma mulher, negra, jovem. Maren é a síntese das que vivem na fronteira entre o amor e o exílio. É um exemplo de como as mulheres são criadas para seguirem roteiros predestinados, ela convive com a ausência silenciosa de sua mãe, com seu destino pré escrito até descobrir uma condição. Seu canibalismo, que também serve para apresentar a personagem mais humana da trama, a que não aceita sua condição e busca combate-la, a que quer melhorar e entender de onde surgiu, a que batalha para encontrar sua mãe e ter as respostas que tanto anseia.
Em certo ponto da trama, Maren afirma para Lee que ser daquela forma era um erro, que era queria ser curada e melhorar. A arte nasce com a função de ser intertextual e de adaptar seu roteiro conforme a vivência do observador. Sinto que cada um de nós entendemos subjetivamente o que Maren quis abordar, e entendemos também a reação abrupta de Lee.
Quem sobra para as mulheres que têm fome demais?
Quem ama as que amam até os ossos?
Luca Guadagnino, ao utilizar o canibalismo como linguagem, reconfigura o horror para falar do feminino. Maren não é um monstro porque escolheu, ela nasceu assim.
Assim como tantas meninas nascem com corpos que o mundo decide rejeitar. Ao ser comparada a sua mãe — também uma “eater”, também institucionalizada —
o filme desenha uma linhagem do feminino doente aos olhos dos outros,
quando na verdade é o mundo que não sabe lidar com a complexidade do desejo feminino.
A mãe de Maren também era uma “eater”, carregava o corpo marcado por uma fome incontrolável, uma monstruosidade que tornava impossível exercer a maternidade como o mundo espera. A mãe de Maren não teve escolha: ou abandonava a filha, ou a devorava. Essa é a tragédia que assombra toda mulher que foge do padrão:
a impossibilidade de ser mãe sem se destruir.
ㅤㅤㅤㅤㅤ
ㅤㅤㅤㅤㅤ
O hospital psiquiátrico como símbolo de aprisionamento feminino
Quando Maren finalmente encontra a mãe, ela está internada em uma instituição, sem língua, sem fala, sem gesto — mutilada emocional e simbolicamente. O silêncio da mãe é um grito político. Ele denuncia como as mulheres que não se encaixam são silenciadas — pela medicina, pela psiquiatria, pela cultura, pela própria família. Ela é o retrato das mulheres que, ao não se enquadrarem, são consideradas loucas.
E por isso, eliminadas. A mãe de Maren é uma consequência da pressão de um sistema que visa aprisionar as mulheres, preenche-las de obrigações e expectativas que, quando não cumpridas, resultam no silenciamento, no isolamento e na morte.
ㅤㅤㅤㅤ
“Você não sabe como é ser você até comer alguém por completo. Até os ossos.”
ㅤㅤㅤㅤㅤ
O canibalismo como uma apologia aos sentimentos e necessidades humanas.
Durante o percurso do filme, diversas cenas de canibalismo nos são apresentadas. A primeira com Maren. A segunda com Sully. A terceira com a apresentação de Lee. A quinta…a sexta, que apresenta a bissexualidade de Lee e a culpa que Maren sente ao matar pessoas, a sexta…..Até que eles fiquem limpos. Não curados de sua “condição” mas que, abdicam da fome e encontram em seu amor força o suficiente para abandonarem a vida nômade.
Maren arranja um emprego. Eles iniciam uma vida calma, com amor e estabilidade. Lembram quando eu disse que, na minha concepção, o Sully simbolizava uma recordação constante desse estado de exclusão? ele acaba com a vida de Lee e Maren, derruba todos os seus esforços de construir uma vida “normal”, longe da marginalização, da exclusão e da invisibilidade. Maren tinha Lee, Lee tinha Maren e eles se enxergavam - cada dor, cada trauma e, mesmo assim se apoiavam. Ele tira a condição de ser vista de Maren ao matar Lee, além de a expor novamente ao canibalismo, fazendo com que o ciclo recomece.
No meu ponto de vista, o canibalismo entre Maren e Lee simboliza não somente o amor que foi construído entre os dois, mas foi como se Maren se consumisse também. Consumisse quem a viu, respeitou e não a abandonou.
Por fim, “Até os Ossos” remete a uma reflexão interior, sobre como nos relacionamos com nosso eu, de como somos vistos perante a sociedade, de como abdicamos de nós mesmos e, que mesmo sem perceber, somos uma longa camada de traumas, medos e imposições sociais. Diferentemente do universo de Maren e Lee, não temos o canibalismo para fazer apologia aos nossos sentimentos, somente as palavras e ações. Somos expostos todos os dias a supressão de um Estado que não se importa com sua população mais fragilizada, que se mantém inerte a margem da sociedade - sem ser vista, ouvida e, se quer, consultada sobre seu bem-estar.
A trama mostra como o amor supre nossa carência, nos dá esperança, dito em tom de deboche por um “eater” para o Lee. O amor o salvaria daquela condição. Talvez em um mundo completamente romantizado haja realmente essa salvação mas no mundo real e em “Até os Ossos” não, a morte de Lee representa isso. A presença constante de Sully também.
Agora Lee permanece vivo no interior de Maren, não somente no estômago mas eternizado em sua lembrança, em seu coração e em seus ossos.
ㅤㅤㅤㅤㅤ
ㅤㅤㅤㅤㅤㅤㅤ
ㅤㅤㅤㅤㅤ
Chega ao final mais uma edição de “Manifesto em Transe” e eu não poderia me sentir mais grata pela sua leitura! Escrever essa newsletter foi me apaixonar ainda mais pela trama e sentir cada vez mais o enredo.
Espero que vocês gostem e se sintam tocados por ela,
se não assistiu, reforço que vale muito a pena.
Apesar de você já ter pego muitos spoilers do que acontece.
Leia também:
Não espere de alguém algo que somente você faria.
ㅤ Tendemos a esperar atitudes semelhantes às nossas das pessoas ao nosso redor, é quase como uma prece por bondade. Um tratamento decente, uma cordialidade diária ou o mínimo de respeito e consideração. Entretanto, isso é tendencioso a falhar.
Que artigo impecável ! Vou maratonar tudo que vc escreve minha filh
BONES AND ALL E ETHEL CAIN? TE OBRIGO A SER AMG CMG AGR!